De todas as minhas indignações, ela era a maior. Tinha o poder de fazer-me levar os olhos ao seu olhar de tal forma que era impossível negar a mim mesmo o interesse em desvendá-la, por mais simples que o feito fosse.
Parecia ser de uma doçura imensurável, no entanto, com um toque amargo no fim, justamente para deixar aquele algo de decodificação nos sentidos, os quais eu perdia ao vê-la passar vestida de amarelo-sol em pleno dia nublado, ela sim, meu amigo, era o sol, sem para isto usar de trocadilhos infames.
Nem preocupava-me em falar de mim na presença de qualquer um que fosse, viver para ela já era o bastante. Era mágico senti-la caminhar em leves passos de mariposa em busca de seu ardente néctar, voando com asas curtas, porém infindas, que a levavam tão distante
de minha aura, que sentia faltar o metabolismo, ao passo que a homeostase já não mais habitava em mim quando da sua partida, em notá-la não mais pisando em minha calçada de pedras medíocres.
Amigo, nunca fui de contar histórias, mas a dela me era de um tom tão misterioso que não pude deixar de rasgar todo e qualquer pedacinho de passado que nela houvesse. E eu não precisava de palavras, não precisava de vizinhos bem informados, na verdade, não precisava nem deste mundo para saber o quão real meu diamante de sol podia ser.
Nas palmas de suas mãos e solas de seus pés estava escrita sua vida, diria feitos todos da mais pura seda, talvez vinda de um país desconhecido. No entanto, ela usava-as no mesmo movimento, repetidos de dias em dias, num tempo que oscilava quando da sua proximidade ou ausência. Aquele movimento tendencioso, que ela realizava com soberba, ainda transparecendo sua origem mediana, indefinida.
Foi quando de minha janela, no momento em que virou-se em direção à minha residência, pude vê-la pronunciando meu nome. E a esta altura eu tinha apenas 10 anos, mas sem dúvida, eu conhecia o amor, bem como por ele era reconhecido, aquele amarelo-sol era brilhante em meus olhos. De pronto, em meu êxtase mundano e divino, vi a ama apanhar-lhe das mãos o envelope, ó Deus, queria eu poder chegar perto daquele papel sagrado que arrastara-se nas mãos de minha deusa. - Pequeno, a carta é para você, venha apanhá-la.
Era meu fim, era meu começo, renasci para depois remorrer, não me aguentava em mim mesmo, apocalipse instantâneo. Com uma letra desconhecida, dizia: Garoto, você pode parar de me olhar da sua janela? Me incomoda o jeito como você fixa o olhar sem tréguas em minha direção.
Minha musa era a entregadora de correspondências, a mais linda mulher que vi em toda minha vida. Vestia sempre a sua camisa um tanto masculina, mas sempre o amarelo-sol, que iluminava as minhas manhãs de terça, quinta e sexta-feira. Ela sabia que eu a amava, porém entendia de uma forma equivocada meu sentimento. E de todas as pessoas do gênero feminino, ela ainda me era a mais instigante, sua história ainda me fascinava, suas mãos de fato eram de seda pura, mas seu coração, o gelo mais resistente, o qual um homem jamais iria tocar. Eu jamais conhecera seu passado, jamais soubera sequer seu nome, e a sua história passava longe de pertencer a mim ou a ela mesma, e isso me deixava feliz, pois a minha vida era a vida dela, e eu, em partes, era ela, em cada olhar trocado, em cada passo sentido e respiração ausente em sua presença. Minha existência, aceitável ou não, fazia parte do seu cotidiano.
Eu amei a carteira. Por anos minha deusa continuou a contemplar-me com suas visitas semanais, minha felicidade era gritante, a cada dia maior. Ela foi meu primeiro amor, a minha história (sem minha nunca ter sido), era intrigante, mesmo sem intenção ou por isto ter algo de diferente, ela tinha o poder de ser simples, ser mulher e assim, desviar-me constantemente o olhar. Ela foi a minha desilusão, meu pesar e todas as minhas lágrimas já derramadas. Ela era tudo, mesmo sendo apenas mais uma no mundo real, um completo, sombrio e ínfimo ninguém.